Elisa Lucinda


Elisa Lucinda dos Campos Gomes (Vitória, 2 de fevereiro de 1958), é uma poetisa, jornalista, cantora, e atriz brasileira.
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- O meu olhar, a minha poesia e meu pensamento estão em tudo que eu toco - disse.


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De Elisa Lucinda - Um Dedinho de Amor


Mamãe tinha cinco filhos e um marido que amava, mas nunca associara amor de casamento com os frutos dessa união. Não tinha um dedinho de consideração por nós. O Kiko ficou reprovado pela 2ª vez na mesma série, e ela disse apenas folheando o jornal: é novo, ano que vem passa.
Eu pequena, olhava aquela hereditariedade de desafeto, aqueles irmãos vindo antes de mim sem afago de mãe. Eu caçula, observava e pensava: qual será a escala para escalá-la? Nada. Era sempre uma mãe distante, mãe montanha, mãe gigante, mãe longe, não imbuída de nos amar, não incumbida dos mais naturais cuidados: merenda, beijo, histórias na hora de dormir, preocupações pentelhas – Não suba no muro, não caia daí!


Ai, era uma mãe extra mater. Parecia que estivéramos todos fora dela quando dentro.
Até que um dia o irmão do meio adoeceu sinistramente na sexta e no domingo definitivamente nos deixou. Eu mal chorava. Tudo em mim eram olhos espantados de ver minha mãe assolada de uma ternura mórbida, porém ternuríssima, sobre o corpo: meu filho, meu amado, meu preferido, minha vida. Proferia ela amorosos impropérios destoantes do que eu  entendia como real até então. Na dor da perda, minha mãe amava mais aquele filho do que a todos quando nasceram:  filho meu, bendito filho meu, o que será de mim?
Compreendi que a culpa disparava nela um amor retroativo, forte, maravilhoso que, se não ressussitara meu irmão, tamanha sua força, em mim produzira uma extensa lavoura de esperança de afeto.
E fora assim desde então. Se algum adoecia, minha mãe fechava as portas dos jornais, da televisão, do marido, do mundo, pra ser só mãe daquele filho enfermo. Cabeceiras insones, histórias contadas até a febre se render, beijos longos que diziam: não me deixe amado, não me deixe.
E eu? Eu tinha era uma filha da puta de uma saúde que teimava em não me largar. Todo mundo lá em casa pegava gripe forte, porque ainda não existia dengue, pegava hepatite tipo analfabeta, porque ainda não havia classificação, caxumba, catapora e infecções sucessivas de garganta. E eu, boinha da silva! Me encostava em todos, me oferecia para cuidar; pequenina ainda, queria respirar o ar contaminado do sangue irmão. E nada. Ela mesmo dizia: essa não precisa de mim. E eu precisava.
Então passei a perseguir acidentes naturais, árvores altas, bombas proibídas em São João, altas velocidades em carrinhos de rolimã, mãos perto demais das fogueiras, mas nenhum galho fraco era meu cúmplice, nenhuma bomba amiga minha,  explodira, nenhuma ladeira era minha companheira, nenhuma chama minha irmã.
Um dia, tinha só cinco, fui na gráfica do meu pai. Pensei, vou machucar um pedacinho do meu  dedo, vai doer, vai ter sangue, curativo, lágrimas de minha desejada mãe, alguma febre, choro meu, colo, colo, colo e,  só depois, muito depois, conserto. Só que a máquina era lâmina e minha matemática, pouca. Calculei mal. Pus o mindinho na guilhotina e fechei os olhos pensando nos olhos de minha adorada mãe que eu  ainda não havia experimentado acolhedores sobre mim. Eu era a última, a menorzinha, a despedida da prole, carregava a impressão de ter nascido e ouvido um adeus ao mesmo tempo. A máquina decepara meu dedo. Deixara apenas uma falange-cotoco primeira, uma base de dedo. Foi rápido. Sangue, muito mais sangue do que eu previa. Torpor.
 Meu pai desesperado trazido amparado pelos empregados eu não vi. Vi só minha mãe morrendo de dor pelo dedinho meu que perdi e que em mim não doía e nem fazia falta.
- Minha filha, minha filhinha adorada, minha preferida, minha garotinha amada, mamãe tá aqui, tá doendo? Responde, tá doendo?   E, eu mentindo: muito mamãe, muito. Mas, não doía nada. Se doía, o amor de minha mãe vindo assim em lufadas inéditas sobre mim que era um machucado só, estancava qualquer dor. Se confessasse, poderia perdê-la de novo. Então perdi um dedinho, um mísero dedinho pra ganhar uma mãe.
Fui crescendo feliz com mimo por aquela mãozinha manca. Na escola, no primeiro dia de aula, me divertia em enfiar essa falange vitoriosa no nariz para que a professora de  estréia pensasse que havia todo o dedo dentro dele. Ela repreendia: o quê é isso Cristina? Tira o dedo do nariz! Que coisa feia, menina feia que você é. Vai se machucar assim. Então, eu tirava a falange mínima, quebrando a ilusão ótica no nariz da mestra. E ela: ô, desculpa querida, me perdoa, a titia não sabia...
E olhava com olhos de se olhar com pena sobre os aleijados e muito arrependimento daquela gafe. Eu gostava da cena. Repeti isso por todo primeiro grau, a cada primeiro dia de aula. Era uma beleza.
Nunca mais perdi minha mãe. Nunca mais fiquei boa do dedo e nem ruim dele. Nunca quis ele de volta. Quem quis ele era a minha mãe. Por muito tempo, fiquei dando meus pedaços para ser amada. Agora não.
Minha mãe ainda quer meu dedo de volta. Eu não quero mais nada. Tenho mãe. Dar um dedinho por uma mãe é muito pouco.
Antes de mim,  ela não tinha um dedinho de consideração por ninguém dos filhos. Agora tem.      




SÓ DE SACANAGEM


Meu coração está aos pulos!
Quantas vezes minha esperança será posta à prova?
Por quantas provas terá ela que passar? Tudo isso que está aí no ar, malas, cuecas que voam entupidas de dinheiro, do meu, do nosso dinheiro que reservamos duramente para educar os meninos mais pobres que nós, para cuidar gratuitamente da saúde deles e dos seus pais, esse dinheiro viaja na bagagem da impunidade e eu não posso mais.
Quantas vezes, meu amigo, meu rapaz, minha confiança vai ser posta à prova?
Quantas vezes minha esperança vai esperar no cais?
É certo que tempos difíceis existem para aperfeiçoar o aprendiz, mas não é certo que a mentira dos maus brasileiros venha quebrar no nosso nariz.
Meu coração está no escuro, a luz é simples, regada ao conselho simples de meu pai, minha mãe, minha avó e os justos que os precederam: "Não roubarás", "Devolva o lápis do coleguinha", "Esse apontador não é seu, minha filha". Ao invés disso, tanta coisa nojenta e torpe tenho tido que escutar.
Até habeas corpus preventivo, coisa da qual nunca tinha visto falar e sobre a qual minha pobre lógica ainda insiste: esse é o tipo de benefício que só ao culpado interessará. Pois bem, se mexeram comigo, com a velha e fiel fé do meu povo sofrido, então agora eu vou sacanear: mais honesta ainda vou ficar.
Só de sacanagem! Dirão: "Deixa de ser boba, desde Cabral que aqui todo mundo rouba" e vou dizer: "Não importa, será esse o meu carnaval, vou confiar mais e outra vez. Eu, meu irmão, meu filho e meus amigos, vamos pagar limpo a quem a gente deve e receber limpo do nosso freguês. Com o tempo a gente consegue ser livre, ético e o escambau."
Dirão: "É inútil, todo o mundo aqui é corrupto, desde o primeiro homem que veio de Portugal". Eu direi: Não admito, minha esperança é imortal. Eu repito, ouviram? Imortal! Sei que não dá para mudar o começo mas, se a gente quiser, vai dar para mudar o final!




Elisa certa vez disse:
Ah, a poesia me emociona totalmente. A poesia faz de mim o que quer porque, eu vou te contar, quando eu penso onde é que eu me enfio por causa da poesia, cara.


Da chegada do amor

Sempre quis um amor
que falasse
que soubesse o que sentisse.
Sempre quis uma amor que elaborasse
Que quando dormisse
ressonasse confiança
no sopro do sono
e trouxesse beijo
no clarão da amanhecice.
Sempre quis um amor
que coubesse no que me disse.
Sempre quis uma meninice
entre menino e senhor
uma cachorrice
onde tanto pudesse a sem-vergonhice
do macho
quanto a sabedoria do sabedor.
Sempre quis um amor cujo
BOM DIA!
morasse na eternidade de encadear os tempos:
passado presente futuro
coisa da mesma embocadura
sabor da mesma golada.
Sempre quis um amor de goleadas
cuja rede complexa
do pano de fundo dos seres
não assustasse.
Sempre quis um amor
que não se incomodasse
quando a poesia da cama me levasse.
Sempre quis uma amor
que não se chateasse
diante das diferenças.
Agora, diante da encomenda
metade de mim rasga afoita
o embrulho
e a outra metade é o
futuro de saber o segredo
que enrola o laço,
é observar
o desenho
do invólucro e compará-lo
com a calma da alma
o seu conteúdo.
Contudo
sempre quis um amor
que me coubesse futuro
e me alternasse em menina e adulto
que ora eu fosse o fácil, o sério
e ora um doce mistério
que ora eu fosse medo-asneira
e ora eu fosse brincadeira
ultra-sonografia do furor,
sempre quis um amor
que sem tensa-corrida-de ocorresse.
Sempre quis um amor
que acontecesse
sem esforço
sem medo da inspiração
por ele acabar.
Sempre quis um amor
de abafar,
(não o caso)
mas cuja demora de ocaso
estivesse imensamente
nas nossas mãos.
Sem senãos.
Sempre quis um amor
com definição de quero
sem o lero-lero da falsa sedução.
Eu sempre disse não
à constituição dos séculos
que diz que o "garantido" amor
é a sua negação.
Sempre quis um amor
que gozasse
e que pouco antes
de chegar a esse céu
se anunciasse.
Sempre quis um amor
que vivesse a felicidade
sem reclamar dela ou disso.
Sempre quis um amor não omisso
e que sua estórias me contasse.
Ah, eu sempre quis um amor que amasse.
...


Para mim este amor é diferente, não é de papel passado,
É amor de papel presente..."
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Aviso da lua que mestrua


Moço, cuidado com ela!
Há que se ter cautela com esta gente que menstrua...
Imagine uma cachoeira às avessas:
cada ato que faz, o corpo confessa.
Cuidado, moço
às vezes parece erva, parece hera
cuidado com essa gente que gera
essa gente que se metamorfoseia
metade legível, metade sereia.
Barriga cresce, explode humanidades
e ainda volta pro lugar que é o mesmo lugar
mas é outro lugar, aí é que está:
cada palavra dita, antes de dizer, homem, reflita..
Sua boca maldita não sabe que cada palavra é ingrediente
que vai cair no mesmo planeta panela.
Cuidado com cada letra que manda pra ela!
Tá acostumada a viver por dentro,
transforma fato em elemento
a tudo refoga, ferve, frita
ainda sangra tudo no próximo mês.
Cuidado moço, quando cê pensa que escapou
é que chegou a sua vez!
Porque sou muito sua amiga
é que tô falando na "vera"
conheço cada uma, além de ser uma delas.
Você que saiu da fresta dela
delicada força quando voltar a ela.
Não vá sem ser convidado
ou sem os devidos cortejos..
Às vezes pela ponte de um beijo
já se alcança a "cidade secreta"
a Atlântida perdida.
Outras vezes várias metidas e mais se afasta dela.
Cuidado, moço, por você ter uma cobra entre as pernas
cai na condição de ser displicente
diante da própria serpente
Ela é uma cobra de avental
Não despreze a meditação doméstica
É da poeira do cotidiano
que a mulher extrai filosofando
cozinhando, costurando e você chega com a mão no bolso
julgando a arte do almoço: Eca!...
Você que não sabe onde está sua cueca?
Ah, meu cão desejado
tão preocupado em rosnar, ladrar e latir
então esquece de morder devagar
esquece de saber curtir, dividir.
E aí quando quer agredir
chama de vaca e galinha.
São duas dignas vizinhas do mundo daqui!
O que você tem pra falar de vaca?
O que você tem eu vou dizer e não se queixe:
VACA é sua mãe. De leite.
Vaca e galinha...
ora, não ofende. Enaltece, elogia:
comparando rainha com rainha
óvulo, ovo e leite
pensando que está agredindo
que tá falando palavrão imundo.
Tá, não, homem.  
Tá citando o princípio do mundo!






Cor-respondência


Remeta-me
os dedos
em vez de cartas de amor
que nunca escreves
que nunca recebo.
Passeiam em mim estas tardes
que parecem repetir
o amor bem-feito
que você tinha mania de fazer comigo.
Não sei amigo
se era seu jeito
ou de propósito
mas era bom
sempre bom
e assanhava as tardes
Refaça o verso
que mantinha sempre tesa
a minha rima
firme
confirme
o ardor dessas jorradas
de versos que nos bolinaram os dois
a dois.
Pense em mim
e me visite no correio
de pombos onde a gente se confunde
Repito:
Se meta na minha vida
outra vez meta
                                            Remeta.




 




Chupetas Punhetas Guitarras


Choram meus filhos pela casa
fraldas colos fanfarras
Meus filhos choram querendo talvez meu peito
ou talvez o mesmo único leito que reservei pra mim
Assim aprendi a doar
com o pranto deles
Na marra aprendi a dar mundo a quem do mundo é
A quem ao mundo pertence e de quem sou mera babá
Um dia serei irremediavelmente defasada, demodê
Meus filhos berram meu nome função
querendo pão, ternura, verdade e ainda possibilidade de ilusão
Meus filhos cometem travessuras sábias
no tapa bumerangue da malcriação
Eu que por eles explodi buceta afora afeto adentro
ingiro sozinha o ouro excremento desta generosidade
Aprendo que não valho nada em mim
Que criar pessoa é criar futuro
não há portanto recompensa, indenização
mesquinhas voltas, efêmeros trocos.
Choram pela casa e eu ouço sem ouvidos
porque meus sentidos vivem agora sob a égide da alma
Chupetas punhetas guitarras
meus filhos babam conhecimentos da nova era
no chão de minha casa.
Essa deve ser minha felicidade.
Aprendo a dar meu eu, aquilo que não tem cópia
tampouco similar
E o tempo, esse cuidadoso alfaiate, não me conta nada
Assíduo guardador dos nossos melhores segredos
sabe o enredo da estória
Vai soprando tudo aos poucos e muito aos pouquinhos
Faz eu lembrar que meu pai também já foi pequenininho
Que só por ele ter podido ser meu ontem
Só por ele ter fodido com desesperado desejo minha mãe
um dia eu existi.
Choram meus filhos pela Nasa onde passeamos planetas e reveses
Eu escuto seus computadores, eu limpo suas fezes
faço compressas pra febre, afirmo que quero morrer antes deles
assino um documento onde aceito de bom grado
lhes ter sido a mala o malote a estrela guia
Um dia eles amarão com a mesma grandeza que eu
uma pessoa que não pode ser eu
Serão seus filhos suas mulheres seus homens
Eu serei aquela que receberá sua escassa visita
Não serei a preferida.
Serei a quem se agradece displicente
pelo adianto, pela carona
de poderem ter sido humanidade.
Choram meus filhos pela casa
Eu sou a recessiva bússola
a cegonha a garça
com um único presente na mão:
Saber que o amor só é amor quando é troca
E a troca só tem graça quando é de graça.


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"...Sei que não dá para mudar o começo. Mas se a gente quiser, vai dar pra mudar o final..."


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Lambe Lambe


Passam muitas pessoas no saguão dos aeroportos.
Passam neste aeroporto da agora,
e eu, no meu pensamento,
não me comporto, imagino elas fodendo:
fulano com fulano,
são casados, gozam, fazem planos?
E ela, quer logo que acabe?
E ele, penetra rosnando?
Fantasio as inúmeras possibilidades de encaixes,
em como foram as noites de amor que tiveram para fazer essas
crianças chinesas africanas alemãs francesas mexicanas libanesas
brasileiras cabo-verdianas espanholas cubanas holandesas
senegalesas turcas e gregas.
(meu pensamento é inconveniente mas ninguém sabe,
escrevo num café, estou, por fora, muito chique no cenário
e nitidamente estrangeira.)
Agora passam dois homens.
Sentam à mesa ao lado.
Falam germânico mas a tradução é da mais alta putaria,
Uma iguaria da mais pura sacanagem!
Eu sei, são gays. Eles não sabem que eu sei.
Pensam que escrevo o abstrato
E capricham descansados ao colo do idioma que não alcanço.
Mas sou poliglota na linguagem dos molhares,
cílios a mais antiga cortina do mais antigo teatro
na pátria universal dos gestos, meu bem!
Eles não escapam.
Um chupa muito o outro, que eu sei,
e o magrinho gosta de dar por cima e de lado.
Importante dizer que dentro desse meu pensamento safado
também não tem pecado.
Só me diverte
Ver o que todos negam,
O que não se diz no social,
Uma radiografia verbal da intimidade alheia é o que faço aqui,
Sem que ninguém suspeite,
Sem ninguém me permitir.
Aquele tem pau pequeno e, pior que isso,
e, mais que suas parceiras, acha isso um problema.
Aquele ali também tem, mas arde na cama e se empenha muito
compensando a diferença.
Aquela, num outro esquema,
diz não gostar da coisa
e fala sem parar.
Só uma pirocada de jeito para fazê-la calar.
A gostosa gordinha engole a espada todinha
daquele altão desajeitado,
cujo grosso membro se torna,
em meio às coxas dela, disfarçado.
E o velhinho punheteiro
De pau mole com jornal no colo?
Talvez seja o único a adivinhar o teor dos meus escritos,
dado que me olha dissimulado e constante
de modo a nunca perder meus segredos de vista.
(Com licença mas é dessa matéria hoje minha poesia)
Enxerida, vejo a mulher com cabelo cortado à la moicano
Com a menina que iniciara a tiracolo,
Feliz sem ser por ela lambida
E sem saber no que estou pensando.
Passam as pessoas
no saguão do aeroporto,
fingem que fazem check-in
fingem viajar sérias e de férias,
fingem estar trabalhando...
mentira,
pra mim ta todo mundo trepando!






Mulata de exportação


Mas que nega linda
E de olho verde ainda
Olho de veneno e açúcar!
Vem nega, vem ser minha desculpa
Vem que aqui dentro ainda te cabe
Vem ser meu álibi, minha bela conduta
Vem, nega exportação, vem meu pão de açúcar!
(Monto casa procê mas ninguém pode saber, entendeu meu dendê?)
Minha tonteira minha história contundida
Minha memória confundida, meu futebol, entendeu meu gelol?
Rebola bem meu bem-querer, sou seu improviso, seu karaoquê;
Vem nega, sem eu ter que fazer nada. Vem sem ter que me mexer
Em mim tu esqueces tarefas, favelas, senzalas, nada mais vai doer.
Sinto cheiro docê, meu maculelê, vem nega, me ama, me colore
Vem ser meu folclore, vem ser minha tese sobre nego malê.
Vem, nega, vem me arrasar, depois te levo pra gente sambar.”
Imaginem: Ouvi tudo isso sem calma e sem dor.
Já preso esse ex-feitor, eu disse: “Seu delegado...”
E o delegado piscou.
Falei com o juiz, o juiz se insinuou e decretou pequena pena
com cela especial por ser esse branco intelectual...
Eu disse: “Seu Juiz, não adianta! Opressão, Barbaridade, Genocídio
nada disso se cura trepando com uma escura!”
Ó minha máxima lei, deixai de asneira
Não vai ser um branco mal resolvido
que vai libertar uma negra:
Esse branco ardido está fadado
porque não é com lábia de pseudo-oprimido
que vai aliviar seu passado.
Olha aqui meu senhor:
Eu me lembro da senzala
e tu te lembras da Casa-Grande
e vamos juntos escrever sinceramente outra história
Digo, repito e não minto:
Vamos passar essa verdade a limpo
porque não é dançando samba
que eu te redimo ou te acredito:
Vê se te afasta, não invista, não insista!
Meu nojo!
Meu engodo cultural!
Minha lavagem de lata!
Porque deixar de ser racista, meu amor,
não é comer uma mulata!
(Da série “Brasil, meu espartilho”)




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Termos da nova dramática (Parem de falar mal da rotina)


Parem de falar mal da rotina
parem com essa sina anunciada
de que tudo vai mal porque se repete.
Mentira. Bi-mentira:
não vai mal porque repete.
Parece, mas não repete
não pode repetir
É impossível!
O ser é outro
o dia é outro
a hora é outra
e ninguém é tão exato.
Nem filme.
Pensando firme
nunca ouvi ninguém falar mal de determinadas rotinas:
chuva dia azul crepúsculo primavera lua cheia céu estrelado barulho do mar
O que que há?
Parem de falar mal da rotina
beijo na boca
mão nos peitinhos
água na sede
flor no jardim
colo de mãe
namoro
vaidades de banho e batom
vaidades de terno e gravata
vaidades de jeans e camiseta
pecados paixões punhetas
livros cinemas gavetas
são nossos óbvios de estimação
e ninguém pra eles fala não
abraço pau buceta inverno
carinho sal caneta e quero
são nossas repetições sublimes
e não oprime o que é belo
e não oprime o que aquela hora chama de bom
na nossa peça
na trama
na nossa ordem dramática
nosso tempo então é quando
nossa circunstância é nossa conjugação
Então vamos à lição:
gente-sujeito
vida-predicado
eis a minha oração.
Subordinadas aditivas ou adversativas
aproximem-se!
é verão
é tesão!
O enredo
a gente sempre todo dia tece
o destino aí acontece:
o bem e o mal
tudo depende de mim
sujeito determinado da oração principal.